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Ângela Guimarães: Racismo é uma marca constitutiva da formação do País

22 novembro, 2019

Nestas celebrações pelo Dia da Consciência Negra,  na última quarta-feira (20/11), a presidenta nacional da União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro), Ângela Guimarães, conclamou população negra e não negra para a luta. Em uma entrevista a Santa Irene Lopes, Ângela defendeu que o racismo não terminou com a abolição formal da escravidão, em 13 de maio de 1888.
“O racismo é uma marca constitutiva da formação histórica, social, econômica e cultural do Brasil”, disse a presidenta da Unegro. Confira outros trechos da entrevista:
 
Neste mês, que denominamos Novembro Negro, reverenciamos nossos ancestrais Zumbi e Dandara, rememorando suas lutas. Como a Unegro define esta celebração?
Ângela: Novembro Negro faz referência ao Mês da Consciência Negra, que é o mês do desaparecimento de Zumbi. O movimento negro, as entidades que lutam contra o racismo, batalharam por muito tempo para cunhar novembro com o Dia Nacional da Consciência Negra. Este mês é de extrema importância, porque é um mês em que a gente consegue mobilizar o conjunto da sociedade, desafiar e provocar o Estado a fazer reflexões sobre as desigualdades raciais, ainda persistentes no Brasil. O racismo não é uma página virada de nossa história. Infelizmente. O racismo não acaba com a abolição formal da escravidão, em 13 de maio de 1888. O racismo é uma marca constitutiva da formação histórica, social, econômica e cultural do Brasil. Em todos os setores da vida social, ele se faz presente, subalternizando a população negra e oferecendo privilégios à elite branca do nosso País. Esta é a importância da data – que na verdade é um mês inteiro de reflexões, de chamada à responsabilidade do Estado, de cobranças. Temos hoje um Plano Nacional, um Estatuto de Igualdade Racial, uma série de políticas e programas conquistados no ciclo progressista que vivemos nos governos Lula e Dilma, e que merecem e precisam ser implantados. Além da persistente denúncia da existência do racismo, e suas várias formas de manifestação na vida social. Vemos o que está acontecendo no futebol, dentro e fora do Brasil. Uma pesquisa nova do IBGE atestou que, pela primeira vez na nossa história, negros e negras são maioria no ensino superior, embora sejam maioria da população brasileira há bastante tempo. Então, é o mês que temos para chamar atenção para esta questão, embora a população negra exista no Brasil nos 365 dias do ano e também o racismo persista nos 365 dias do ano. É um momento especial. Celebra a memória de Zumbi e de Dandara dos Palmares. Celebra a importância do que foi aquela experiência de sociedade alternativa, com liberdade, com justiça, com fraternidade, que foi o Quilombo dos Palmares, mas também desafia a sociedade a refletir e a tomar posições no sentido de implementação de políticas públicas, que venham enfrentar o racismo, promover a igualdade racial. Para a gente a importância é esta.
 
O tema é Rebele-se! Quais as razões e o significado desta chamada?
Ângela: Rebele-se é o lema da Unegro desde que ela foi criada. É a consigna com a qual mobilizamos nossa militância, de Norte a Sul do Brasil, 365 dias do ano. É um chamado a se rebelar contra o racismo, respondendo muito bem à proposição e, assim, às provocações da grande intelectual negra norte-americana e ex-membro dos Panteras Negras e do Partido Comunista Norte-Americano, Ângela Davis. Ela nos desafia que, numa sociedade profundamente racista, não basta apenas repudiar ou recriminar o racismo. É necessário tomarmos postura antirracista, ter uma posição ativa na sociedade, de enfrentamento, de denúncias, de cobrança. É isto que a Unegro vem fazendo ao longo de seus 31 anos. A atual conjuntura histórica, com o agravamento da situação politica, social e econômica do Brasil, exige ainda mais da população negra, da população não negra, um engajamento antirracista para enfrentar essas medidas neofascistas, de destruição dos direitos, de desmonte do Estado Nacional e privatização e entrega de nossas riquezas. A institucionalização aberta e defendida por esses governantes, por Bolsonaro e sua trupe, da necropolítica, da seleção de quem vive e quem morre. E necessariamente quem morre no Brasil é a população negra, desde a tenra infância. Todo dia, temos notícia da morte de crianças negras, assassinadas pelas balas, que eles dizem que são perdidas, mas que sempre encontram os corpos negros. Um genocídio que vitima um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil. Um genocídio que faz com que o Brasil seja o quinto país do mundo em feminicídios. Na última década, aumentou o feminicídio entre mulheres negras e diminuiu o feminicídio de mulheres brancas. São políticas que atentam contra toda a forma de existência do País e que nós nomeamos como a necropolítica. Um genocídio! Um genocídio, uma necropolitica, que mata de fome a nossa população, quando corta o Bolsa Família, quando desemprega, quando deixa empresas e indústrias fecharam vagas, quando nega acesso a educação com este corte de 30%. Quando persegue e demoniza estudantes e professores nas escolas e universidade públicas. É uma necropolítica institucionalizada O chamado da Unegro, há 31 anos, é um chamado à rebelião, a nos organizar, a nos insubordinar, a nos insurgir contra este estado de coisas. E na era Bolsonaro, se multiplica, se potencializa este chamado, porque a coisa está muito pior.
 
Na atual conjuntura política do Brasil, ocorre um grande retrocesso para as conquistas da classe trabalhadora, atingindo principalmente a população negra, vítima de um processo de genocídio institucionalizado. Como reagirmos a esta política devastadora?
Ângela: A Unegro foi fundada em 14 de junho de 1988 em Salvador, no estado da Bahia, e hoje está presente em 22 estados brasileiros. Em toda a sua trajetória de lutas, de 31 anos, nosso DNA tem sido a denúncia do racismo, em todas as suas formas de manifestação, a solidariedade com os povos oprimidos de todo o mundo, a luta contra a intolerância religiosa e o racismo religioso, a defesa dos valores e da cultura negra. Então, ao longo de nossa história, sempre temos feito a denúncia e também atuado na perspectiva da organização da população negra, para a denúncia do racismo e para a exigência de seus direitos. Nós fomos fundados no âmbito da crítica que o movimento negro fez ao centenário da abolição, até então comemorado oficialmente pelo Estado, pela sociedade e pela mídia e por um amplo conjunto de instituições. Porque se contou durante muito tempo no Brasil que nós vivíamos em uma democracia racial. E que o Brasil seria exatamente, aos olhos do mundo, o exemplo desta perfeita integração, onde indígenas, negras e negros, brancos e brancas viviam em aparente harmonia, em aparente igualdade. E a Unegro vem atuando em coalizão, aliança, com outros movimentos da luta contra o racismo, justamente para desconstruir esta ideia, esta mitificação da realidade brasileira – e para descortinar a realidade dos dados, a realidade vivenciada pela população negra, que é a maioria da classe trabalhadora, maioria dos desempregados e das desempregadas, maioria dos que estão na informalidade, maioria daqueles e daquelas que estão mais vulneráveis às situações de violência. A nossa marcha contínua, ao longo destes 31 anos, tem sido, por um lado, fazer a denúncia e, por outro lado, organizar o povo para fazer as denúncias e exigir seus direitos. Nos períodos democráticos que vivemos, também participar das conquistas, da conquista da criminalização do racismo com a criação da Lei Caó, que completa 30 anos neste ano de 2019. Participar da criação da Fundação Cultural Palmares, primeiro órgão do governo federal a tratar das demandas da população negra, no caso da cultura negra. Lutar para conquistar o primeiro Ministério de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, que foi em 2003, com a criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas Públicas pela Igualdade Racial). Lutar para conquistar a lei de cotas nacional, de cotas na educação superior pública brasileira, a reserva de vagas para estudantes negras e negros no ensino superior. Lutar para conquistar o Estatuto da Igualdade Racial, no ano de 2010. Também este Estatuto, instrumento de extrema importância, poderosíssimo, no sentido de assegurar os direitos negados há mais de 500 anos à população negra. Lutar para conquistar – e a Unegro faz parte desta conquista – a Lei de Cotas nos concursos públicos. Então, nestas três décadas, 31 anos recém completados, a Unegro tem uma longa folha de serviços prestados à população negra, à população brasileira como um todo. Nós costumamos dizer que a atribuição – o compromisso – de lutar contra o racismo não pode ser exclusivo da população negra, porque interessa a todos aqueles e aquelas que são partidários de um mundo, de uma concepção de mundo, concepção de país, onde reine a justiça social, a liberdade, a fraternidade, a igualdade, que o respeito à diversidade seja um princípio. Lutar também contra o racismo, ombro a ombro, ao lado da população negra. É isto que a gente tem feito. São estas as conquistas que a gente contabiliza. E neste momento de agravamento da situação politica nacional desde o golpe de 2016 e com o advento do governo Bolsonaro, que representa uma extrema-direita ultraliberal, ultramachista, ultrarracista, ultralgbtfóbica, absolutamente entreguista, que tem desprezo pelo povo brasileiro, a nossa tarefa ganha ainda mais relevância.
 
Como nós, negras e negros, organizados em uma entidade de abrangência nacional, podemos influenciar outros segmentos para a luta histórica de reparações?
Ângela: É como a gente já vem trabalhando. A Unegro trabalha, a partir de frentes políticas. Não acreditamos em protagonismo isolado ou nenhum tipo de heroísmo de qualquer pessoa, liderança ou entidade. Trabalhamos por meio de frentes, organizar frentes, acumular forças, trazer mais entidades para esta luta. Desde a nossa fundação, temos contribuído. Participamos da construção do Coletivo de Combate ao Racismo da CUT, com o Coletivo de Combate ao Racismo da CTB. Temos atuado por meio de Frentes Amplas, na Frente Brasil Popular, na Frente Povo Sem Medo, na Convergência Negra, na Coalizão Negra por Direitos. Esse é um princípio que a Unegro tem. Lá atrás, em 1991, fomos protagonistas de fundação da Conen, que é a Coordenação Nacional de Entidades Negras, um fórum do movimento negro para gente articular ações e proposições na direção de um Brasil livre do racismo. E fazemos interlocução diariamente com os outros segmentos da sociedade. Temos uma interlocução muito ampla com as universidades públicas, com universidades privadas. Temos núcleos da Unegro em funcionamento nestas universidades. Temos relações diretas com reitorias progressistas e comprometidas com esta agenda antirracismo, com Pró-Reitorias de Ações Afirmativas. Participamos de suas formulações, da formulação e desenho de seus programas, das suas atividades de formação. Influenciamos as universidades de forma que os currículos delas sejam alterados de modo a compreender também a contribuição da população negra. Fazemos articulação com movimento sindical, movimento de mulheres, com movimento cultural, com movimento de juventude, com movimento estudantil. Estivemos presentes em todos os encontros nacionais da UNE, de Estudante Negros e cotistas, o Enune, de todos os Encontros Nacionais de Mulheres, nos dois encontros nacionais de mulheres e também estudantes negros da Ubes. Temos feito, assim, a nossa parte no ponto de vista de agregar, de congregar e de disputar também consciências nesses segmentos, que são segmentos avançados da sociedade brasileira. Temos feito, também, interlocução com o meio religioso, com o movimento negro evangélico progressista, com igrejas progressistas, como igrejas batistas, metodistas e outras. Temos também interlocução com as pastorais populares da igreja católica. Então a gente pretende, vem fazendo ao longo dos nossos 31 anos, uma articulação de forma muito ampla. A gente sabe que não basta congregar somente aqueles que partilham do mesmo ponto de vista que a gente. É urgente agregar mais pessoas a esta luta. Somos 207 milhões de brasileiros e brasileiras, sendo 54% de população negra. E maioria ainda não está organizada, sob o ponto de vista de nenhuma luta social, de nenhuma luta coletiva, de nenhuma luta por dias melhores. Entãom temos buscado fazer estas articulações, buscando, inclusive, fazer muitas atividades públicas, em estações de transbordo, de metrôs, de ônibus, em praças públicas, em escolas públicas. Temos buscado fazer aulas públicas em praças, ocupar determinados espaços. Continuar realizando nossas marchas e as demais atividades que favorecem contato tanto com movimento social organizado como com o grosso da população – que é quem, neste dramático momento da vida brasileira, a gente tem que atingir.
 
Aqui em Porto Alegre, o Povo Tradicional de Matriz está empreendendo uma grande resistência à decisão do governo municipal de privatizar o Mercado Público. O projeto em andamento – na fase de licitação – prevê mudanças estruturais do Mercado Público, com a retirada inclusive do “Bará do Mercado”, assentado desde a construção do prédio, no centro da encruzilhada. Como a Unegro Nacional, pode contribuir com nossa luta?
Ângela: Sobre esta questão do acirramento e do recrudescimento do racismo religioso, infelizmente estamos vivendo isto em muita cidades do Brasil. Aqui, em Salvador, não tem sido diferente – e na região metropolitana, também não, São terreiros invadidos, patrimônios vilipendiados, lideranças religiosas agredidas. Isto tudo é muito triste. Mas, infelizmente, é um sinal conjunto de forças ultradireitistas que chegara ao poder central, à base do voto – a partir daquela intensa manipulação de fake news. E infelizmente houve o advento também de forças retrógradas e fundamentalistas às prefeituras, câmaras municipais, assembleias legislativas e governos de vários estados brasileiros. Isto nos coloca um desafio muito grande de fortalecer a luta de resistência. Se a gente pudesse dá um nome atualmente à luta que vimos empreendendo no Brasil, é literalmente é luta de resistência. Para além de tudo o que a gente já construiu, nestes 519 anos, parece que há um projeto deste segmento da extrema-direita, que é brasileira, mas que é uma expressão da ultradireita internacional. Um projeto de destruir, o mais rápido possível, todas as nossas pequenas e, mais ainda, as grandes, as recentes e históricas conquistas do povo brasileiro. Então, continuamos em marcha, continuamos organizados e organizadas. Mas é necessário ampliar nossa mobilização. É necessário que se façam vigílias, que se interpelem os Ministérios Públicos Federal, Ministérios Públicos Estaduais, para que mais capítulos desta história de horror, de terror racista, de ódio religioso de racismo religioso, não se façam vitoriosas. Emano daqui de Salvador, toda a nossa solidariedade, nossa força, para que vocês consigam resistir e derrotar estes fundamentalistas, que hoje infelizmente estão em muitas instituições do Estado. Emano forças e digo que a Unegro Estadual do Rio Grande do Sul também está totalmente mergulhada nesta luta. Nossa presidenta Elis Regina esta aí. É uma grande mulher batalhadora, pessoa que se engaja e se envolve a fundo em todas as lutas. E a Unegro-RS está completamente à disposição e jogada nesta luta. E o que a gente puder fazer daqui, de Salvador, de São Paulo, do Rio, do Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas, Distrito Federal, Roraima, Rondônia, Pará, e de cada canto do Brasil, onde a gente estiver, a gente vai fazer.
Fonte: Unegro-RS

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