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Fábio Palácio: O nazismo de Alvim e a política cultural de Bolsonaro

20 janeiro, 2020

“A comunidade artística deve ser vista como parceira na promoção do desenvolvimento cultural, e não como um segmento a ser ‘enquadrado’.” A opinião é do jornalista e professor da Universidade Federal do Maranhão, Fábio Palácio, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP).
Em seu estágio doutoral, na University of Reading, no Reino Unido, Palácio se aprofundou na obra do teórico culturalista galês Raymond Williams. Nesta entrevista ao Vermelho, ele analisa ações anunciadas por Roberto Alvim, que acaba de ser exonerado da Secretaria Especial de Cultura após gravar vídeo com apologia ao nazismo.
Vermelho: A reação ao episódio envolvendo Roberto Alvim se concentrou no tema da apologia ao nazismo. Apesar da gravidade dessa atitude, que chega a configurar crime, a questão tem ainda outro lado: o debate sobre a política pública que estava sendo anunciada. Há conexão entre uma coisa e outra?
Fábio Palácio: Total conexão. Após a demissão do secretário, vêm à tona áudios de Roberto Alvim informando a Bolsonaro ter um plano para “bombardear” o País com “arte conservadora”. Isso lembra muito a velha luta dos nazistas contra o que chamam de “arte degenerada” – que nada mais é do que a própria arte moderna. Ora, definir qual será o teor da arte brasileira não é algo que caiba ao Estado, mas, sim, à sociedade. E, quando falamos em sociedade, isso deve incluir com destaque o próprio segmento cultural e a comunidade de artistas.
Não caberia ao Estado apontar ao menos diretrizes gerais para o setor?
Cabe ao Estado, se é de fato democrático, o fomento e a promoção das artes, em consonância com a diversidade e as aspirações do povo brasileiro. A arte precisa refletir o povo em sua inteireza. Não se pode colocá-la a serviço de interesses particularistas. Para refletir o conjunto do povo, é necessário diálogo constante. A comunidade artística deve ser vista como parceira na promoção do desenvolvimento cultural, e não como um segmento a ser “enquadrado”.
Mas o governo Bolsonaro não opera a política cultural em chave democrática. De um lado, promove sua visão parcial em detrimento de importantes segmentos do povo brasileiro. Já havia agredido índios, negros, etc. Agora, com sua defesa aberta do nazismo, agride especialmente a comunidade judaica, que deu importante contributo à edificação da nacionalidade.
Por outro lado, a ideologia que é imposta encontra-se marcada pelo anti-intelectualismo. Não sou eu, mas o próprio presidente, quem deixa isso claro, quando afirma que as áreas de Humanidades – como a Filosofia, a Sociologia, as Artes e as Letras – devem ter menos investimentos para que se possa cuidar de coisas que “dão retorno”. Ora, é exatamente como parte desse pensamento que se vem cuidando não do fomento e da promoção, mas exatamente da desconstrução da cultura e das artes.
Quando o presidente propõe recriar o Ministério da Cultura, é preciso perguntar se ele mudou de opinião, se faria autocrítica por ter extinguido o ministério, ou se se trata apenas de confete, serpentina e demagogia – isto é, de ação voltada a apagar a má impressão que sua escolha anterior deixou na sociedade brasileira.
A política anunciada pelo ex-secretário não contribui de alguma forma para o fortalecimento da arte nacional?
Analisemos friamente: como era essa “nova política cultural”? Fomento livre e desinteressado, como deve ser não apenas nas artes, mas também na ciência, deixando nas mãos dos intelectuais a responsabilidade principal pelas definições de mérito? Não. Simplesmente um prêmio nacional, ação sob medida para a prática do dirigismo.
É interessante notar a distância que há entre esse tipo de política e um programa como o Cultura Viva do governo Lula, também conhecido como “Pontos de Cultura”, que opta claramente por delegar o protagonismo à própria comunidade.  O governo Bolsonaro, por outro lado, parece querer ditar aos artistas, através da concessão de “prêmios”, o que devem fazer.
Como ação de política pública, o prêmio deveria ser mantido?
A essa altura, não sei qual artista teria a coragem de ir receber o tal prêmio, vinculando sua imagem ao episódio envolvendo Alvim. Contudo, a fim de mais bem avaliar a ação proposta, proponho abstrairmos essa questão. Como seria o tal “Prêmio Nacional das Artes”? Um número determinado de obras “heroicas” pinçadas a dedo pelo governo em cada uma das regiões do país.
A questão que fica é: esta seria a “nova política”? A julgar pelas palavras do secretário exonerado, sim. Em lugar de um fomento amplo, o artista ficaria então com duas alternativas: ser apoiado por empresas através da Lei Rouanet ou ser selecionado pelos gestores do governo Bolsonaro, que não parecem aceitar a diversidade cultural. Triste dilema.
Veja que o tal “Prêmio Nacional” sequer contemplaria todas as linguagens. A categoria “Literatura”, por exemplo, era destinada apenas aos contos – nada de romance ou poesia. A dança não constava do cardápio de linguagens contempladas, apesar de sua evidente importância para a cultura brasileira.
É triste constatar que regredimos a este ponto, após anos de acúmulo nas gestões dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. Eles mudaram o panorama das políticas culturais a partir de uma visão antropológica da cultura, isto é, da visão segundo a qual a cultura é a dimensão simbólica da vida, e não se restringe às artes. Não é à toa que tivemos nessas gestões importantes avanços em segmentos como a culinária, a moda e os games, que não costumam ser identificados como arte stricto sensu, mas têm papel crescente no âmbito da chamada economia criativa.
A pergunta que fica à comunidade artística e à sociedade brasileira é: aquilo que foi anunciado por Alvim é de fato o que queremos como política cultural? Se a resposta é negativa, então é preciso estar atento. Não adianta exonerar secretário, recriar ministério, trazer artista global se a política continua sendo a mesma.

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