Notícia

Lares chefiados por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza

20 janeiro, 2020

Fígado ou ovo pro almoço, quando é possível comprar alguma proteína, casa enlamaçada no período de chuvas, falta de remédio no posto de saúde e aproximadamente R$ 500 reais por mês para sustentar três filhos em dois cômodos pequenos às margens de um manguezal. Esta é a realidade da casa de Paula Roberta, 37, moradora de Guia de Pacobaíba, bairro-distrito do município de Magé, na Baixada Fluminense. De acordo com a última Síntese dos Indicadores Sociais, ela está abaixo da linha da miséria, com US$ 1,90 per capita por dia. Em 2018, segundo o estudo, esse valor equivalia a aproximadamente R$ 145 mensais, por pessoa.
Abaixo da linha da pobreza, estão 63% das casas comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos, com US$ 5,5 per capita ao dia, cerca de R$ 420 mensais. O índice representa mais que o dobro de pontos percentuais se comparado à média nacional, igualmente alarmante:  25% de toda a população está abaixo da linha da pobreza. Para mulheres brancas e com filhos, a proporção de casas abaixo da linha da pobreza é de 39,6%.
De acordo com o IBGE, há mais de 7,8 milhões de pessoas vivendo em casas chefiadas por mulheres negras. No caso daquelas chefiadas por mulheres brancas, o número absoluto é de 3,6 milhões. O arranjo com menor proporção de pessoas abaixo da linha da pobreza é o de casal sem filhos: 9%.
A conta do IBGE leva em consideração o Paridade de Poder de Compra, ou PPC, que é “utilizada para comparar o poder de compra entre diferentes países, ou moedas, e é utilizada como alternativa à taxa de câmbio”. Ou seja, com quantos reais, em comparação a dólares, um cidadão brasileiro pode comprar a mesma quantidade de bens e serviços que um cidadão americano ou indonésio.
Mas em casas como a comandada por Paula Roberta não se consegue comprar muita coisa. A renda é composta pelas faxinas em “casas de família”, que ela conseguiu começar a fazer há três meses, e pelo Bolsa Família, o programa de transferência de renda implantado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003, a fim oferecer uma ajuda imediata a pessoas em situação de extrema pobreza.
Mas, de acordo com Paula, erros já fizeram seu benefício ser bloqueado, quando o “sistema” apontou que seu filho não estava frequentando regularmente a escola. Enquanto buscava comprovar que o menino ia às aulas, ela relata que já passou fome: “Mas é sempre a mulher que segura as pontas, principalmente por causa dos filhos. Vamos deixar nossos filhos passando necessidade?”, analisa, de forma retórica.
Basicamente, o dinheiro de Paula é todo direcionado para a alimentação. Com filhos de 16, 14 e oito anos, ela se preocupa em comprar frutas e biscoitos. “A gente sabendo administrar, tudo dá certo.” Questionada se sobra alguma quantia para comprar algo exclusivamente seu, ela diz que não, mas explica que recebe muita ajuda: “A moça para quem eu faço faxina às vezes me dá um presente, manda alguma coisinha para as crianças. Ela me ajuda à beça”, relata.
Antes de conseguir essa nova fonte de renda, Paula ficou doente, exatamente por não conseguir atender todas as necessidades básicas de seus filhos.
Restrição de serviços
Em Guia de Pacobaíba, dezenas de famílias sobrevivem sazonalmente da venda dos caranguejos, esporadicamente de pequenos serviços braçais (os famosos “bicos”), e principalmente de benefícios do governo, como o próprio Bolsa Família. O local fica a cerca de 60km da capital.
No mesmo quintal em que está localizada a casa de dois cômodos de Paula, vive Adriana Pinheiro, de 36 anos. Casada e mãe de dois filhos, de 17 e 9 anos, a única renda da família é o salário mínimo que o marido recebe como frentista, trabalhando na capital fluminense. Arranjos como o da família de Adriana e que vivem com menos de US$ 5,5 por dia, são 29,3% do total dos casais com filhos. A renda também tem que dar para a mãe, doente, e o padrasto, desempregado. Com tantos obstáculos, Adriana adoeceu.
Há quatro anos, ela foi diagnosticada com depressão, “por problemas do passado que voltaram”, diz, sem dar muitos detalhes. No posto de saúde, consegue fluoxetina, receitada pelo psiquiatra da mesma unidade de saúde. Quando recebeu a reportagem, a doença estava controlada, mas já houve tempos também em que ela não conseguiu a medicação. E entrou em crise.
A Síntese dos Indicadores Sociais também analisa restrições a direitos básicos. A falta de saneamento básico, por exemplo, também é mais patente em domicílios comandados por mulheres negras: 41,8% não tinham acesso a coleta de lixo, água encanada e rede tubular de esgoto. Nas casas de Paula e Adriana, a água que “cai” dos canos só dá para encher os baldes para tomar banho e lavar roupa. Para beber ou cozinhar, as vizinhas têm que caminhar cerca de 1km até o poço. Nunca adoeceram por conta da água —“Graças a Deus”, dizem —, mas outras moradoras não tiveram a mesma sorte.
As casas às margens do manguezal também não têm esgoto. Todos os dejetos são levados por uma rede clandestina ao próprio mangue. As ruas, sem asfalto, são esburacadas e enlamaçadas, o que impede a chegada de caminhões de lixo, e terrenos baldios viram lixeiras a céu aberto.
Para Wânia Santanna, vice-presidente do conselho curador da ONG Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), situações como as das casas dessas mulheres não podem deixar de ser consideradas na análise de pobreza. Ela destaca que o problema não é só a falta de renda.
“Tudo falta às mulheres negras. Ela é um esteio que tem que dar conta de tudo: da fome, da falta de saneamento, da falta de saúde, de educação adequada. Então fica aquele sujeito, por acaso feminino e negro, no centro, como uma ilha rodeada de problemas. Se tivesse escola funcionando, posto de saúde funcionando, uma legislação trabalhista que não fosse discriminatória, ou seja, se elementos que não são de competência dela estivessem organizados, ela não estaria na linha de pobreza”, analisa.
Na comparação com a população branca, Santanna explica, o que ajuda a tirá-la dessa linha de extrema pobreza é, exatamente, não ter discriminações pré-estabelecidas: “Os problemas para o branco pobre podem até ser muitos, mas por questões de renda, classe ou poder, quando conseguem acessar educação, saúde pública ou privada, segurança, etc., saem de baixo da linha de pobreza para a linha do bem-estar”.
A falta de horizonte em relação a um emprego fixo, formal ou ao menos com melhor remuneração já atingiu mulheres negras do entorno das casas de Paula e Adriana. Ambas, aliás, jamais tiveram carteira assinada, e quando questionadas pela reportagem qual seria o emprego dos sonhos, responderam “trabalhar em caixa de supermercado” e “ter minha própria loja de roupas”, respectivamente.
Enquanto o emprego dos sonhos ou qualquer outro emprego não aparecem, ambas têm nos filhos e na fé seu principal esteio. Membros da Assembleia de Deus, elas esperam uma providência divina para melhorar sua qualidade de vida. “Para Deus, nada é impossível. Tenho fé que Ele vai me ajudar”, diz Adriana.
Políticas direcionadas
Wânia Santanna também analisa quais mudanças podem ser feitas, em termos de políticas públicas, para melhorar a situação dessas mulheres. De antemão, ela refuta a ideia do senso comum de que mulheres como Paula e Adriana têm mais filhos para receber maiores benefícios de programas como Bolsa Família: “Isso é uma crueldade”.
O Bolsa Família tem o benefício básico, de R$ 89, concedido a famílias em extrema pobreza e o benefício variável, de R$ 41 para cada criança, adolescente ou mulher em fase de amamentação dado a famílias em extrema pobreza. Mas há um limite: são, no máximo, cinco benefícios variáveis por domicílio. Há também o benefício variável para famílias que tenham jovens de 16 e 17 anos, que é de R$ 48, com um teto de dois benefícios por residência, nestes casos. Há ainda outro benefício, com valor não tabelado, calculado a partir da renda familiar e de outros benefícios já recebidos. Em resumo: ninguém fica rico às custas do Bolsa Família.
Para Santanna, há necessidade de melhores programas complementares ao Bolsa Família nos municípios, além de equidade na distribuição de recursos públicos.
“A realidade da pobreza não se altera, porque essa parcela da população não recebe o que tem direito — isso lhe é subtraído. Por exemplo, o mesmo asfalto que está na orla de Ipanema deveria estar em Duque de Caxias. Não há motivo para isso não ser assim, a não ser a distribuição do poder, o acúmulo de poder político e de classe. Todo mundo sabe que uma avenida tem de estar asfaltada, mas na Baixada Fluminense é como se fosse normal não estar.”
Para André Simões, gerente da pesquisa da Síntese dos Indicadores Sociais, do IBGE, os dados desagregados por gênero e raça expõem ainda mais a vulnerabilidade de grupos como o de mulheres negras, e a intenção ao sistematizá-los é fazer com que outros pesquisadores se debrucem sobre o tema e aprofundem o estudo das desigualdades.
“Ainda que nos últimos anos tenha havido um avanço, uma inclusão maior, principalmente na questão de educação, há uma desigualdade grande. E a população de cor preta ou parda é mais vulnerável quando comparamos todos os temas”, analisa.
Para Wânia Santanna, esses dados são fundamentais para a criação de políticas públicas específicas. De acordo com a historiadora, é preciso questionar “não somente a desigualdade étnico-racial mas a profunda assimetria, a distância que nos separa”.
“As políticas de redistribuição de renda, para as mulheres negras, não foram suficiente para tirá-las do patamar em que elas se encontravam quando os programas de redução da pobreza começaram mais fortemente, em 2003. Elas podiam estar mais miseráveis? Infelizmente sim, mas o fato é que não há uma progressão justa e necessária. As mulheres negras se mantêm proporcionalmente sendo aquele grupo mais prejudicado social e economicamente.”
 
Fonte: Gênero e Número

PCdoB - Partido Comunista do Brasil - Todos os direitos reservados