Notícia

Preta Ferreira: “Estou presa pois a Justiça no Brasil é seletiva” 

15 agosto, 2019

Entrevista da revista Marie Claire 
 

Na última segunda-feira, 5 de agosto, Janice Ferreira Silva, conhecida como Preta Ferreira, completou seu 39º dia detida, segundo ela, por um crime que não cometeu. “Estou na cadeia injustamente porque mulher preta e pobre neste país ou é alvo de 14 tiros como Marielle Franco ou acaba em um lugar assim. Estou presa pois a Justiça no Brasil é seletiva, racista e tem lado”, nos diz ela, que conversou a com a reportagem de Marie Claireem uma sala nas dependências da Penitenciária Feminina de Santana, em São Paulo, onde aguarda a resolução de seu processo. 
Preta, que aos 35 anos é formada em publicidade, trabalha como cantora e agente cultural e ainda é uma das lideranças do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), foi intimada na própria casa no dia 24 de junho por suspeita de extorsão. Em outras palavras: suspeita de cobrar aluguéis indevidos de moradores de ocupações. O inquérito que levou a sua prisão temporária se baseia em denúncias de treze testemunhas anônimas e é um desdobramento da investigação do desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo Paissandu, em maio de 2018. O prédio era ocupado pelo Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) e abrigava aproximadamente 150 famílias. Preta afirma que não tem ligação alguma com o edifício, que sequer já pisou no lugar. 
Em entrevista coletiva, André Figueiredo, o delegado responsável pelo caso, afirmou: “as treze testemunhas dizem que pagavam R$ 200 a R$ 400 e esse valor não era usado em melhorias. Aqueles que não pagavam eram ameaçados e agredidos. Não estamos acusando os movimentos, mas pessoas que atuavam nos movimentos”. 
Além da cantora, foi preso seu irmão, Sidney Ferreira Silva, também do MSTC, e Edinalva Silva Pereira e Angélica dos Santos Lima, ambas do movimento Moradia Para Todos. Outras cinco pessoas tiveram a prisão temporária autorizada, mas não foram localizadas. Entre elas, Carmen Silva, mãe de Preta e Sidney, que segundo a filha, “está foragida”. 
De acordo com a assessoria de imprensa do MSTC, nem Preta nem Sidney têm relação com a ocupação do Wilton Paes, “senão aquela estabelecida logo após o desabamento, quando comitês de ajuda organizados pelos movimentos de moradia prestaram auxílio às famílias desabrigadas”. A defesa dos irmãos chegou a entrar com um pedido de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, mas esse foi negado pela vice-presidente do órgão, a ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Preta é a mais velha de oito irmãos. Na adolescência, veio da Bahia para São Paulo atrás da mãe e, desde então, assim como ela é envolvida com direito à moradia na capital. Nesta entrevista, fala de seus dias na Penitenciária Feminina de Santana, das denúncias anônimas que as colocou ali e explica as cobranças que os moradores costumam pagar aos movimentos.
Nos conte sobre o dia da sua prisão. Onde você estava, com quem estava e o que sentiu quando soube que seria detida? 
PT. Estava em casa, eram 6 da manhã. Entraram três policiais na minha casa, inclusive o delegado armado. Comigo estavam duas crianças, uma de 1 ano e outra de 5. Meus sobrinhos. Então, não existia essa necessidade de entrar com arma em punho, até porque sempre que me chamaram para depor eu fui de boa e espontânea vontade. Mas acho que fazem isso para se sentirem heróis, machos. Essa é a única resposta para os homens brancos serem violentos dessa forma. Quando se trata de mulher, não há respeito.
E quando chegou à delegacia, ainda acreditou que seria presa? 
PT. Não. Quando fui presa, entrei na delegacia de cabeça erguida e tinha certeza que sairia rápido dali. Porque não devo nada para ninguém. E continuo aqui de cabeça erguida porque sei que sou inocente. Estou presa por um processo que é baseado em fofocas. E que pena que esse processo não é aberto para a população. Tenho provas da minha inocência. Como uma pessoa é extorquida e recebe recibo? Isso não existe. Como posso extorquir alguém se também faço parte dessa demanda e tudo que pagaram eu também paguei?
Fala-se em denúncias anônimas. Você sabe quem as fez? 
PT. São pessoas que moravam nas ocupações, mentirosas e caluniadoras. Inclusive tem uma delas, que é inimiga de Carmen Silva, que já processou minha mãe e que já perdeu o processo. Prefiro não dizer o nome dela. Os verdadeiros criminosos estão aí soltos. E os inocentes estão presos. Tá na hora da Justiça parar de ser seletiva.
Qual é o seu papel dentro do MSTC? 
PT. Trabalho com cultura. Sou formada em publicidade, sou cantora e atriz. Trabalho com muitos artistas do país inteiro. Meu papel então é, além de trazer projetos para a ocupação, além de lutar por vagas em escolas e universidade e buscar cursos gratuitos para os moradores, envolvê-los nos meu projetos. Arrumar trabalho para essas pessoas.
Se dentro do movimento você é alguém envolvida em projetos culturais, por que foi uma das denunciadas? 
PT. Na verdade, a parte que me cabe no processo diz que fiz ameaças, que ameacei algumas pessoas.
Que cobranças são essas que os moradores de ocupações precisam pagar? 
PT. Dentro do movimento existe um estatuto e um regimento. Todo mundo que entra nas ocupações é ciente que tem que pagar R$ 200 mensais. Quando a gente ocupa, não encontra um prédio com energia, com água, extintor, porteiro, câmera, advogado. Então a gente tem que contratar e fazer tudo isso. E isso é exigência da própria prefeitura, temos que trabalhar junto ao poder público. Então, o movimento é autossuficiente e autogestor. Quem arca com todas essas despesas são os próprios moradores. Quem é que mora de graça no Brasil? Quem é que mora de graça em qualquer lugar? Tem que pagar. Nada acontece de graça. R$ 200 não é aluguel, é o valor que cobramos para podermos manter o prédio em segurança.
O MSTC administra quantas ocupações? 
PT.  5 ocupações. Em uma delas pagamos diretamente ao proprietário, que é o prédio da José Bonifácio. É como se fosse um aluguel. Foi feito um acordo entre a Secretaria de Habitação de São Paulo, nós e o proprietário. As outras ocupações são o Hotel Cambridge, que agora está em reforma e será um projeto Minha Casa, Minha Vida, a  Nove de Julho, a Casarão e a ocupação Rio Branco. Foram nove pessoas com mandado de prisão preventiva. Algumas delas eu nem conheço, só ouvi falar o nome na televisão. Essas pessoas estão relacionadas ao prédio que caiu. Aliás, dizem que o estopim da minha prisão foi esse prédio. Se esse foi mesmo o estopim, por que eu estou aqui presa? Meu movimento se chama MSTC, eu nunca pisei no prédio que caiu. Eu não tenho nada a ver com isso. 
E sobre a prisão do seu irmão. Como ela está sendo justificada e qual é o papel dele no movimento por moradia?
PT. Meu irmão não faz parte do movimento nem mora em ocupação. Mora em Diadema e não tem nada a ver com o MSTC. Está preso porque segundo o delegado do caso [André Figueiredo]isto aqui se trata de uma formação de quadrilha. Então minha família inteira é uma quadrilha?
E as pessoas que tiveram o mandado de prisão expedido mas não estão presas? Sua mãe, por exemplo, está foragida. Certo? 
PT. E que fique foragida para que possa provar sua inocência.
Você teve acesso ao seu processo? 
PT. Sim.
E você estava nos dizendo que ele se trata “apenas de fofoca”. 
PT. Isso. É até uma vergonha que a Justiça aceite um processo como aquele. Da parte que me acabe, não tem nada que me incrimine. Fulano de tal falou para fulano de tal que eu ameacei alguém. E estou presa por isso? E tem mais, disseram que essa ameaça aconteceu no dia 25 de junho. Fui presa dia 24. Como teria acontecido essa ameaça? Por telepatia? O processo é todo baseado em falhas.
Esta é a primeira vez que você é alvo de um processo criminal? 
PT. Sim. E espero ser a última. Sempre fui tão caxias que paguei todas as minhas contas em dia para não ter nem meu nome sujo.
Conta sobre a sua história com o movimento de moradia. Quando e como ela começa? 
PT. Começa ainda criança e pela necessidade. Minha mãe saiu da Bahia deixando seus oito filhos para atrás para fugir do meu pai, porque ela sofria violência doméstica. Então, ao chegar em São Paulo em meados dos anos 90, dormiu na rua, morou em albergue… e depois conheceu o movimento de moradia. Aí sim pôde ter um lar e nos buscar. Fomos todos morar na ocupação Nove de Julho. No movimento de moradia eu aprendi a ter direitos, aprendi que podia estudar, aprendi a ter senso de coletividade. O movimento de moradia também me empoderou como mulher e cidadã. Mais tarde, comecei a empoderar outras mulheres para que não tolerem a violência doméstica que minha mãe sofreu e que consigam estudar como estudei. 
Hoje você mora em ocupação?
PT. Não. Mas porque tenho condições de morar em outro lugar. Pago aluguel, moro na Bela Vista junto com a minha mãe e as minhas irmãs. E também não quero tirar o lugar de quem de fato precisa morar na ocupação. No entanto, estou sempre presente na Nove de Julho, trabalhando e lutando.
Até quando morou na Nove de Julho?
PT. Até 2002.
Quero que nos conte como tem sido os seus dias aqui na penitenciária e se existe algo bom desta experiência. 
PT. Estar aqui só reforça na minha cabeça que ninguém é melhor que ninguém. Eu já sabia disso, agora seu mais. Destes dias aqui dentro, tirei que a minha luta vale a pena sim. E que quando eu sair, sairei mais forte. Sei que a minha prisão ocasionou forças em outras pessoas e que está nos fortalecendo como movimento.
Você tem medo de ficar muito mais tempo aqui? 
PT. A minha prisão é política, isso me dá orgulho, não medo. 
 

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