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Revolta dos Búzios foi a 1ª revolução social do país, diz historiadora

12 agosto, 2020

Nesta quarta-feira (12/08), a eclosão da Revolta dos Búzios na Bahia completa 222 anos (1798/2020). Para celebrar este importante fato histórico do país, resgatamos do nosso arquivo uma entrevista feita em 2012 com a professora e historiadora Antonietta D’Aguiar Nunes, que defende que o movimento baiano foi a primeira revolução social do Brasil.
Além da independência brasileira do julgo português, a Revolta dos Búzios também buscava a liberdade dos escravos e a igualdade racial e social na então colônia. Também conhecida como Revolta dos Alfaiates e Conjuração Baiana, foi a primeira manifestação libertária em que o povo teve protagonismo, segundo a professora.
Confira a entrevista:
 
O que foi a Revolta dos Búzios?
Antonietta Nunes – Essa revolução foi uma parte das várias revoluções liberais que estavam acontecendo em todo o mundo, na segunda metade do século XVIII e começo do século XIX. Quando o Marquês de Pombal, em Portugal, fez uma reforma na Universidade de Coimbra, em 1772, ele introduziu as ideias iluministas, que floresceram e deram na Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade. A partir daí, toda a elite brasileira que se formou na Universidade voltou com essas ideias de independência, de comércio livre, de não ter que mandar seus impostos e tudo depender de Portugal para tomar suas decisões. Um grupo de pessoas como José Cipriano Barata, o padre Agostinho Gomes, um professor de gramática latina e retórica, Francisco Muniz Barreto de Aragão, que eram pessoas formadas em Coimbra, fez essa revolução aqui. Além desses, tinha o soldado Hermógenes Aguiar Pantoja, que falava muito bem francês e que tinha recebido um comandante de uma nau francesa que aportara em 1797 e que, provavelmente, tenha trazido uma série de livros. Esses manuscritos teriam sido traduzidos por frades carmelitas e circulavam entre o povo, entre artesãos, alfaiates, carpinteiros, soldados e escravos libertos, que assimilaram os ideais. Eles usavam um búzio para demonstrar que também estavam a favor da conjuração [daí o nome Revolta dos Búzios]. Portanto, a da Bahia foi a primeira revolução social porque muitos dos indivíduos que faziam parte da elite das outras localidades eram escravistas e não estavam preocupados com a abolição da escravatura. Entre os 33 condenados, 11 eram escravos, naturalmente os seus donos não deixaram que eles fossem condenados à morte porque isso significava perda de patrimônio. Os quatro que morreram eram artesãos, eram gente do povo.
O ideal não era só o de liberdade…
AN – A gente queria comércio livre e, naturalmente, os escravos queriam a igualdade e a fraternidade que se fizessem entre as diversas classes sociais. Se fala também, mas secundariamente, porque isso não foi muito desenvolvido, em um governo republicano, tal como estava sendo na Revolução Francesa.
Então, o caráter social dessa revolução é o que a distingue das outras? Da Conjuração Mineira, Carioca e Pernambucana…
AN – Sem a menor dúvida. Era o único desses movimentos liberais que iniciaram com indivíduos formados em Coimbra e, portanto, elite dirigente, em que esteve envolvida a questão da fraternidade da Revolução Francesa. Isso fez com que a nossa elite não fosse excludente e que também incluísse e defendesse o interesse daqueles escravizados.
Mas essa inclusão dos escravos partiu das elites ou foi uma iniciativa deles?
AN – Não é que houvesse uma movimentação com iniciativa por parte da elite, mas houve uma não resistência porque essas ideias estavam em vigor e ela se sentiria até envergonhada de possuir escravos. Muitos até libertaram escravos.
A punição dos envolvidos no movimento – alguns foram condenados à forca – diminuiu essa efervescência desses desejos de libertação e igualdade que Salvador vivia?
AN – Muito pelo contrário. No início do século XIX, nós tivemos uma série de rebeliões escravas, que nada mais eram do que novamente desejos de serem iguais aos outros cidadãos. O fato de se punir era normal porque era considerado crime de lesa-majestade querer mudar a forma de governo. Lá na Inconfidência Mineira só teve um punido com a morte. Aqui o negócio parecia mais assustador porque um terço dos condenados era escravo e, certamente, outros eram negros libertos. A questão racial, social e de igualdade, na Bahia, era muito grande e por isso tivemos o número maior de mortes. No Rio não teve morto nenhum, nem em Pernambuco. Aqui teve, justamente, por causa das classes sociais.
A revolta refletiu na Independência da Bahia?
AN – Justamente pela mobilização popular. Quando as Cortes mandaram o comandante das armas Inácio Madeira de Melo pra assumir o comando dos nossos portos e, portanto, controlar a situação, os brasileiros não aceitaram. Com isso, o pessoal saiu pelo Recôncavo [Baiano] e, então, a luta se deu com recursos inteiramente locais e laicos. Eram pessoas que trabalhavam nas fazendas, nos engenhos, que se mobilizavam para formar o exército que estava lutando para expulsar os portugueses. Então, toda a fase local da luta só teve uma grande adesão exatamente por causa dessas ideias.
Os movimentos revolucionários da Bahia tiveram um papel importante na História do Brasil e eles não são contemplados pelo calendário nacional, não estão na grande imprensa, nem nos livros de história, em nível nacional. Como encara isso?
AN – É um problema da historiografia em geral, que conta a história da classe dominante e dos governantes. Até 1763, quando se fala em História do Brasil, o eixo dela estava na Bahia, porque nós éramos a capital, mas deixamos de ser. Passamos a ter a posição que São Paulo tem hoje. Quando se fala no Brasil internacionalmente, pouco se fala em São Paulo, que é a maior cidade. Tende-se a convergir a atenção para a situação dominante, o indivíduo que está no poder e a classe que está em torno dele. Era a mesma coisa em relação à independência. A Bahia teve uma importância muito grande, mas era secundária desde o momento que deixou de ser capital do Estado.
Quem eram os quatro líderes da Revolta dos Búzios que foram enforcados? A História, pelo menos aqui mesmo na Bahia, os contempla de forma justa?
AN – Eles eram soldados e alfaiates, portanto, gente muito simples e gente que, normalmente, não se lembra. Atualmente, é que resolveram colocar o nome dos quatro que foram mortos ali no largo da Piedade. Colocaram lápides com o nome deles exatamente para que os baianos jamais esqueçam que gente do povo lutou também pelos ideais de liberdade há mais de 200 anos. Mas isso é algo que quem lembra é o pessoal de esquerda que vê a coisa do ponto de vista do povo ou, felizmente, quem passa pela Piedade. Essa é uma história baiana que todo mundo quer contar, quer saber, exatamente com a mesma simpatia que se tem por Lula, que é um operário e que chegou lá. “Tivemos pessoas iguais a mim que lutaram pela liberdade”.
Mais de 200 anos se passaram e os movimentos pela igualdade ainda estão aí e parece que o sonho de chegar “o dia em que todos serão iguais”, como pregavam os líderes do movimento em panfletos, está distante. O que, nesse período, já foi conquistado e o que ainda falta conquistar?
AN – Todo ideal é ideal, portanto, é uma ideia que a gente faz utópica, perfeita. Nós caminhamos muito, não chegamos lá no ideal, mas já demos passos muito grandes. Nós sim nos tornamos um país independente politicamente, depois ficamos na dependência econômica da Inglaterra, dos Estados Unidos e, no cenário mundial, nós fomos considerados, durante muito tempo, um país subdesenvolvido. Mais recentemente se tem visto o PIB brasileiro aumentar e a nossa participação em nível nacional tem sido cada vez melhor. Nos últimos governos Lula e agora com o governo Dilma, a gente tem constatado efetivamente uma diminuição da desigualdade, uma melhor distribuição de renda para população. A Declaração dos Direitos Humanos, que é da época da Revolução Francesa, até hoje não é respeitada, mesmo sendo sancionada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948. Mesmo assim se tem desigualdades raciais, sociais, econômicas e isso é uma luta permanente. Nós não podemos parar de lutar. A gente tem que lutar mais para obter mais.

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