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Roger Machado: 'Sou um ativista político dentro do futebol'

15 outubro, 2019


 
Quando chegou à sala de imprensa do Maracanã, Roger Machado, de 44 anos, não imaginava que sua entrevista coletiva pudesse ganhar repercussão nacional.
Para o treinador, explicar a derrota de sua equipe, o Bahia, para o Fluminense parecia ser a tarefa mais difícil.
Ele se preparava para responder às críticas pela derrota de 2 a 0 no último sábado 12. Até que uma pergunta sobre racismo no esporte alterou o foco da conversa.
Machado e o técnico Marcão, do Fluminense, são os dois únicos treinadores negros da elite do futebol brasileiro.
O vídeo com a resposta de Machado a respeito do tema passou a ser compartilhado nas redes sociais e alcançou até mesmo o público que não acompanha o Campeonato Brasileiro.
Gaúcho de Porto Alegre, Machado começou a carreira de treinador em 2014, quando assumiu o time Juventude de Caxias do Sul.
Com passagens marcantes por Grêmio, Atlético-MG e Palmeiras, chegou ao Bahia em abril deste ano e logo criou uma relação de afinidade: o time baiano, engajado em questões sociais, cativou um técnico que procura seguir os mesmos princípios.
“Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol é para confirmar isso”, disse o treinador na entrevista coletiva.
Formado em educação física, Roger ingressou no ensino superior depois dos 34 anos. Antes, buscava conhecer um pouco mais a sociedade por meio de livros presenteados por sua irmã e os devorava durante as viagens como atleta de Grêmio, Fluminense e Vissel Kobe, do Japão.
Em entrevista exclusiva à revista ÉPOCA, o treinador do Bahia fala sobre como construiu sua visão política e analisa o preconceito racial que ainda existe no Brasil.
O senhor esperava tanta repercussão após sua entrevista coletiva no Maracanã?
Não esperava. Na verdade, o que relatei, me baseando em dados, foi algo que sempre foi de senso comum. O racismo estrutural é de conhecimento geral. Confesso que não esperava uma repercussão tão grande de algo que, para mim, as pessoas sempre souberam. Como muita coisa no Brasil é um tabu, talvez as pessoas não queiram discutir o tema. Descobri que muitas pessoas não querem ouvir sobre esse assunto.
O senhor disse que não deveria ser novidade ter dois técnicos negros treinando clubes da Série A e que o preconceito no Brasil é estrutural. Como é possível acabar com essa forma de racismo no país?
A gente precisa deixar de negar que o racismo existe. É preciso aceitar essa condição, refletir sobre isso e, conjuntamente, buscar alternativas para solucionar esse problema. Ou a gente entende que não há esse problema, o que para mim é hipocrisia, ou assume que existe racismo. Na medida em que as pessoas afirmam que não existe racismo no Brasil, a gente pelo menos precisa tentar entender o porquê de tanta desigualdade. Uma parte importante é a educação. Um cidadão educado tem a condição de discernir com mais facilidade o que é certo e o que é errado.
Como o ambiente do futebol tem recebido seu posicionamento sobre o tema?
Muita gente me parabenizou, falou de minha coragem e tranquilidade, do aspecto didático e do conhecimento apresentado com embasamento. Confesso que coragem não é ausência de medo, porque senti receio de como as pessoas receberiam o que eu estava falando. Por dentro eu estava fervendo, meu coração estava batendo a 180 por minuto. Eu entendia que tinha de estar tranquilo para não parecer que estava me vitimizando, muito menos usando o tema como uma tentativa de revanche diante de um problema social tão sério. Não acho que deva ser parabenizado pelo que falei, sendo esse um assunto que todos deveriam abordar.
Hoje o senhor mora em Salvador, cidade de população majoritariamente negra. Isso também estimula a falar sobre racismo?
Há uns dias, estava trocando mensagens com Guilherme (Bellintani, presidente do Bahia) e disse: “Hoje eu acordei com uma sensação de pertencimento tão grande a esse lugar e estou tão feliz de estar aqui no clube”. Depois de minha manifestação, novamente a gente trocou mensagens e lembrei dessa conversa. Disse para ele que a Bahia e o Bahia me empoderaram para que eu tivesse a coragem de dar aquela declaração. O fato de, hoje, estar inserido nesse contexto me ajudou muito a dar aquela resposta sobre o tema.
O senhor também citou temas como misoginia em sua entrevista coletiva. Outras questões sociais além do racismo precisam ser debatidas dentro do futebol?
Acredito no futebol como uma ferramenta. Ele é meio, e não fim. O futebol tem poder de alcance muito grande, por meio da paixão e do amor. Nós vivemos estruturalmente numa sociedade cheia de preconceitos e não devemos ter vergonha de assumir que temos preconceito de algum tipo, porque nós crescemos nessa estrutura de sociedade machista. A primeira coisa que precisamos fazer para mudar é aceitar que o preconceito existe. Não falar sobre racismo, homofobia, machismo e violência doméstica não diminui os casos. Falar sobre o assunto, ter órgãos para defender a mulher, ajuda. O que falta a nossa sociedade é empatia, se colocar na condição do outro para poder entendê-lo sem julgá-lo e aceitá-lo da forma que ele é.
O papel de um técnico de futebol vai além da discussão sobre o jogo?
Tanto dentro como fora de campo, tento influenciar positivamente as pessoas, seja por meio do jogo, de posicionamentos ou condutas. O futebol pode ser uma ferramenta de transformação social e que pode ser alcançada pelo jogo. Não faria sentido nenhum trabalhar num segmento em que você pode ter alcance e atingir apenas um lado. Eu me vejo também como um ativista político dentro do futebol. Muita gente diz que futebol e política não se misturam, mas eu discordo. Viver é fazer política. Se no final do livro da minha vida estivesse escrito: “Esse indivíduo ajudou a construir o esporte, mas acima de tudo ajudou a usá-lo como uma ferramenta de transformação”, eu estaria satisfeito e poderia morrer em paz.
 

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